domingo, 19 de dezembro de 2010

Fecho-me

“Quando a Lua apareceu,
Ninguém sonhava mais do que eu
Já era tarde, mas a noite é uma criança
distraída.
Depois que eu envelhecer,
Ninguém precisa mais me dizer
Como é estranho ser humano nessas horas de partida.
(...)
Eu não tenho nada pra dizer por isso digo
Eu não tenho muito o que perder, por isso jogo
Eu não tenho hora pra morrer, por isso sonho”

Rita Lee

Ela nunca deixava que ninguém entrasse em seu quarto. Sempre que a visitavam, as pessoas eram recebidas na sala-de-estar e, quando muito, levadas à cozinha. Os visitantes chegavam, entravam, olhavam; ela os acolhia com bastante afeto, alegria, sorrisos, beijos e abraços; nunca, contudo, no quarto – somente na sala.

Houve um dia em que certo homem resolveu visitá-la. Ela, como sempre, abriu a porta, sorriu, abraçou, beijou. Sentaram-se à sala-de-estar e conversaram. Falaram sob sussurros, riram risos cheios malícias, os dedos passeando sorrateiramente pelos cabelos um do outro. Ela abria os braços e reclinava o pescoço, demonstrando-se receptiva e aberta. Num descuido dela, porém, os olhos dele caíram sobre a escadaria e subiram até chegar à porta, fechada, do quarto dela. Ele se levantou e pôs-se a subir as escadas e, antes que ela pudesse se adiantar até ele e impedi-lo de entrar em seu quarto-catedral, lá estava ele, forçando a maçaneta para baixo e invadindo, dilacerando, rompendo e violando a entrada sagrada que pé algum pisa.

Ele olhou ao redor, não sem demonstrar fascínio no olhar. Caminhou pelo quarto, tateou os móveis, sentou-se à cama, observou atentamente as fotografias penduradas à parede, cada detalhe. E ela permanecia calada, pois sabia que não havia nada mais a ser feito. Ela agora só rezava para que ele não levasse consigo, para dentro do quarto, a sujeira externa. Torcia para que ele não desordenasse o que ela, com tanto custo, arrumou. Os olhos dela enchiam-se de lágrimas e a expectativa, o medo cresciam dentro dela. Ele observava e demorava-se nisso, como se quisesse gravar ali cada detalhe.

De repente, ele parou diante do armário. Olhou. Pensou. E abriu.

Sobre ele caíram todas as desordens que ela tirara do quarto. Dentro do armário daquele quarto limpo, perfumado e organizado, havia sujeira, lodo e podridão. Ela limpava o quarto, espanava e organizada; mas, ao invés de jogar tudo no lixo, ela se enganava, cegava-se e enfiava tudo no armário. O que importava era a agradável aparência externa daquele quarto, que estava bonito como estava. Agora, porém, tudo se desmoronava. Tudo se espalhava pelo chão, contaminando os móveis, as paredes e o teto. A sujeira engolia tudo e o quarto agora se assemelhava a um pântano úmido, escuro e feio.

Ele olhou aquilo tudo, assustado. Seu olhar passava da sujeira à mulher. Sem falar nada, então, desviando-se dos pedaços maiores e mais feios de desordem, saiu. Sem se despedir, sem abraçar, sem beijar. Simplesmente saiu. E deixou-a lá, sozinha, dilacerada. Solitária com a sujeira que ela demorara anos para limpar. Sozinha com a sujeira que, agora, começava a devorar seu corpo.

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