domingo, 10 de abril de 2011

“Mas se eu já me perdi,
Como vou me perder?
Se eu já me perdi
Quando perdi você.
Mas se eu já te perdi,
Como vou me perder?”

Arnaldo Antunes

Eu lembro quando eu era menina, meu pai sangrou um porco a mando do patrão. Era véspera de Natal e o coitado do porco ia pra barriga do povo.
Eu estava andando, arrastando minha boneca de sabugo pelo quintal da casa, procurando alguma coisa pra ser feita, quando escutei aqueles gritos de agonia, que incomodaram meu coração. Vinham de trás da casa, de perto do chiqueiro. Eu não sabia o que era, mas aquilo me incomodava e me deixava sem ar. Fui ver do que se tratava. Era o porco que meu pai estava sangrando pro patrão. Tinha um corte no pescoço do porcão, o sangue borbulhava de dentro da garganta dele, fervia e ele estrebuchava igual doido, tremia como se um espírito demoníaco estivesse dentro do corpo dele. Eu fiquei ali parada, observando aquela cena, abraçando minha boneca de sabugo. O que mais me assustou foi que o diabo do porco me olhou antes de morrer. Ele me olhou com uns olhos arregalados, pedindo socorro e eu posso jurar de pé junto que ele chorou antes de parar de estrebuchar. Foi a partir daquele dia, que em todas as vésperas de Natal, eu trato é de passar bem longe do chiqueiro.
Mas teve uma que foi especial. Essa véspera... O filho do patrão veio. Todo engomadinho, doutor. Entendido de gente. Não é gente da roça como eu. Não tem as mãos engrossadas pelo trabalho como eu. Estudado. Perfumado. Minha mãe estava doente da barriga. Verme, ele disse. Passou remédio. Ela sarou.
Um dia, procurei o doutor. Disse pra ele que eu tava doente. Doente do peito. Que eu sentia uma batida muito forte toda vez que eu via ele, que era uma coisa assim, boa, mas que doía, e doía demais, e que passava pra barriga e me fazia querer vomitar. Ele riu e disse que doente eu não estava, não, que moça bonita não fica doente do peito: moça bonita se apaixona. Quando ele falou isso, ele me beijou. Beijo na boca, beijo de língua.
Já fui beijada antes, sim, mas só por esses meninos roceiros daqui, eles tinham um beijo bruto, que lambuzava a gente. O doutor, não, o doutor sabia como segurar uma mulher. Tive a melhor sensação do mundo. Aquela véspera de Natal foi das melhores. Passei junto do doutor. Sentei do lado dele na mesa. Era costume da família do patrão chamar a gente pra ceiar junto deles, sim, mas eu nunca tinha sentado tão perto de um deles. Ele roçava a mão na minha quando ia pegar o copo e eu deixava minha canela encostar na dele debaixo da mesa. Ele até disse pro patrão que eu era uma moça linda, que ele não sabia que no interior tinha moça bonita daquele jeito. “Quem sabe não é motivo pra você vir aqui mais vezes, meu filho”, o patrão disse.
Ele voltou muitas vezes, sim. Com muita freqüência. Sempre ia me ver. Ensinei ele andar a cavalo. Ele ia lá em casa comer as broas da minha mãe. Começou a dizer que me amava e até tentou se engraçar, mas eu disse que não, era só se casasse. Ele ria e dizia que eu era mesmo uma moça muito linda.
Mas teve um dia que eu fiquei na agonia, só esperando por ele e nada de o tal aparecer... Comecei a ficar aflita. Será que tinha acontecido alguma coisa? Ele sempre vinha, ele nunca tinha faltado com a promessa dele de vir. Por que ele estava demorando tanto? Resolvi, então, ir atrás. A cidade não ficava muito longe dali. Inventei pro meu pai que precisava ir na fazenda vizinha ver uma mãe de uma amiga, que estava muito adoentada e precisando de força a mais numa novena, coisa séria, de promessa. Sendo promessa, meu pai deixou. Peguei nossa carroça e fui. Eu sabia, sim, onde era a casa do doutor, ele me deixou escapar uma vez. Sou astuta, sei guardar as informações. Sei principalmente tirar as informações dos outros. Quando a gente mora no mato, a gente tem que aprender a sobreviver assim.
Fui mais ou menos pro rumo que meu nariz apontou, seguindo o que a lembrança me permitiu, de acordo com a conversa que tive com o doutor, até que cheguei na casa dele. Reconheci o carro, era ali mesmo.
Vi o doutor no portão. Parecia se preparar para sair. Desci da carroça, animada. Ia falar com ele! Amarrei o cavalo, ajeitei meu cabelo. Corri até lá. Mas uma coisa me interrompeu...
Qual não foi minha surpresa quando vi aparecer bem do lado dele uma mulher! E mais ainda quando vi brilhando no dedo dele e no dela duas alianças! Quando ele ia pra fazenda, aquela aliança não estava lá... Não... De primeira, eu não quis acreditar. Escondi atrás de uma árvore que eu vi, e fiquei observando.
Os dois se beijaram e a mulher disse que iria esperar o doutor no carro, e chamou ele de “meu amor”.
Senti que estava doente. Doente da garganta, do coração, da cabeça e dos olhos. Senti um embrulho muito ruim na garganta, como se eu tivesse engolido um caroço de pequi. Depois senti uma dor muito forte no coração, como se alguém estivesse esmagando meu pobrezinho, com toda força, como se quisesse espremer, fazer um suco dele. Minha cabeça começou a girar e, por causa disso, tive que sentar. Sem que eu quisesse, comecei a chorar. O suco que faziam do meu coração jorrava pelos meus olhos e isso fazia a minha cabeça girar. Não consegui voltar pra fazenda. Dormi ali mesmo, debaixo daquela árvore, como uma mendiga. Quem me acordou foi um moço que varria rua, perguntando se o cavalo era meu. “É meu, sim, senhor”. O cavalo é meu. Quem não é meu é o doutor.
Voltei devagar, com a carroça girando lenta. O doutor pensa que a gente da roça é boba, que a gente da roça não tem sentimentos, não chora, que não sai suco do nosso coração. Imediatamente, eu lembrei do porco morrendo.
Quando cheguei em casa, lá estava minha mãe e meu pai preocupados, já pensando que eu me tinha ido com a defunta. “Que diabo de promessa doida de longa foi essa?”. “Foi nada não, mãe! Eu é que perdi o caminho de casa e acabei dormindo debaixo de uma árvore por aí!”. “Arre, menina! E se uma onça te pega!”.
E se uma onça pega o doutor? E se eu pego o doutor?
Passou uma semana certinha e o doutor voltou a aparecer. Sem aliança, como sempre, com o sorriso de sempre, com a beleza de sempre, me amando como sempre. Mas não tinha volta, o suco do meu coração tinha ido todo embora. Naquele dia, eu perguntei se o doutor já tinha visto lavagem de porco de perto.
Levei ele no chiqueiro. Mostrei pra ele como alimentava porco. Ele riu, me disse que eu era mesmo uma moça muito linda. “Agora faz você”, eu disse. Ele torceu um pouco a boca, se abaixou, pegou a bacia cheia de lavagem de porco. Andou mais para dentro do chiqueiro e começou a tarefa. O que o doutor não sabia é que eu tinha uma faca escondida na barra da minha saia.
“Doutor... Você é tão lindo, doutor...”.
Quando ele se virou, com aquele sorriso lindo e cheio de dentes brancos, eu fiz igual meu pai fez com o porco: um corte só, certeiro.
O doutor caiu no chão. O sangue borbulhava de dentro da garganta dele, fervia, e ele estrebuchava igual doido, tremia como se um espírito demoníaco estivesse dentro do corpo dele. Como ele era lindo até na hora de morrer! Eu fiquei ali parada, observando, mas, daquela vez, eu não tinha mais a minha boneca de sabugo para agarrar. Ele estendeu as mãos para mim e eu agarrei as mãos dele. Ele me olhou com uns olhos arregalados, pedindo socorro. “Eu amei você, doutor... Mas não posso te ajudar agora”.
Uma lágrima caiu dos olhos dele.
Eu sangrei o doutor. Eu sangrei o doutor igual meu pai sangrou o porco naquela véspera de Natal.

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